O coração estava disparado. As sombras enigmáticas delineadas na fresta da porta roída, o vento batendo as venezianas das janelas trincadas, o escuro da noite em pleno meio dia. Tudo era emoção que ardia no peito. Tudo era o coração que batia em desespero. As três batidas na porta que ele ouvira anunciavam mais que chegada de um forasteiro, de um estranho. Anunciavam a ausência da ausência. Ele já não era o único naquele lugar. Ele já não estava mais sozinho. Ele já não estava mais sozinho e a presença que assombrava era a mesma que sorria, escondida, do outro lado da porta. A porta roída era a ruína da existência solitária que ele, com esforço, construíra.
As três batidas na porta ruída era o começo do fim. E o desespero o consumia. E o desespero provocava espasmos na pele por vezes tocada por outra pele. E as batidas na porta ruída tremiam o osso e a junta e a pele e os cabelos. E as batidas na porta tremiam na alma. E ele já não era mais ele. Ele já não era mais o solitário andante que ficava. Ele já não era o solitário andante que perdera a inocência. Ele já não era o que ele havia construído. Ele era outra coisa e essa outra coisa tomava posse em desespero.
E o silêncio se fez. E o vento calou. E as batidas cessaram. E a porta já não tremia. Era só o escuro da noite que cismava em escurecer o meio dia. Era só o escuro da noite e a sombra na fresta da porta estática. Era só a sombra e o menino. E aquela sombra estática, escura, delineava a luz. E aquela sombra escura que revelava outra existência, e aquela sombra preta que assustava e consumia a branquidão da luz, sumiu.
E a retomada da ausência e do silêncio. E a retomada da solidão fez, por um segundo, o menino desejar o desespero anterior. A existência que viveu séculos toda espremida em cantos resguardados de medo e insegurança, a existência que passou por percalços e arreios e moléstias, e a existência que deixou de existir, tremia em temor.
É que o corpo ainda lembrava-se de outras vidas. O corpo ainda lembrava-se do tempo em que se encontrara com as sombras que haviam do outro lado da porta. E o corpo sofreu. Sofreu de espasmos e angústias e de uma dor que não tem medida. Era uma dor de peito arrancado, de peito dilacerado e, cada pedaço de coração moído, cada centímetro de carne pulsante, cada centímetro de carne independente, percorria as veias e os órgãos, amassava as entranhas e pulava no ritmo acelerado e dolorido de quem vivera algo terrível.
E o corpo lembrava-se disso. O corpo lembrava-se de cada pedaço de coração que pulsava em partes diferentes do corpo. O coração que ardia no pé, na mão. O coração que ardia na entranha da carne, na perna, na medula. O coração havia sido estraçalhado e cada migalha pulsava coma força de um coração inteiro.
E era tanta dor, tanta migalha, tanta fraqueza. Era tanto tudo que de tudo ele fez o nada. E construiu um grande nada a sua volta. E enquanto construía esse nada, esse vazio, ele juntava, pedaço por pedaço, o coração. E o nada foi se expandindo. E o nada tomava conta. E o nada era quente e aconchegante. E no nada morava o silêncio. O silêncio que lhe permitia o encontro secreto com o desconhecido, o silencio de quem vela a ausência e recorre a si mesmo como recurso de expansão da própria existência. Uma existência que se desdobra em si, que se multiplica e que se transforma. E o silencio era vital. E o nada era vital. E do nada ele fez tudo. Juntou-se todo em um todo enigmático. Juntou-se todo numa existência que era só sua. Juntou-se todo e sentou-se no sofá à espera de nada. E não havia angústia, não havia desespero. Era ele e o nada. E nada era só o que importava.
E do nada ele fez sua casa. Mobilhou-a calmamente, ergueu paredes e seguranças. Protegeu bem o que construíra com a força que só quem já viveu a desilusão sabe que tem. Não fez portas nem janelas, nem telhados. Tudo era uma expansão de parede infinita. Não havia fresta, não havia brecha. O nada tomava conta pra que não houvesse defeito. E o nada rondava para a segurança e manutenção daquele estado. Não havia tevê, não havia telefone. Havia o menino e o mobiliário primordial. A cama, o sofá, a mesa e a geladeira. E aos poucos ele foi construindo o tédio. E do tédio ele fez memória. E do tédio ele capturava aquilo que ele já não era.
Lembrou-se dele menino apaixonado pelo próprio corpo. Não a paixão de quem venera sua existência celestial ou a beleza do narciso. Mas a paixão pelos órgãos e entranhas que regiam com maestria a um pulsar involuntário de vida. Ele era apaixonado pelas reações espontâneas que o seu corpo sofria. O arrepio do vento, do toque singelo da mão no peito, o arrepio na espinha que lhe dava quando ouvia uma música linda. A lágrima que escorria e contaminava o rosto com o toque da alma. A contração das bochechas e a extensão do rasgo do lábio que revelavam os dentes e o som estridente da alma ressoando em forma de riso. E a contorção do corpo quando corpo do outro resvala suado junto ao seu. A contração do corpo quando, por acidente, o gis riscava a lousa de um jeito estranho e o grito estridente da matéria branca, contorcia as células da pele lisa do menino inocente.
A excitação que fazia brotar dos poros uma ardência na carne involuntária. E a carne se movimentava em ereção do pelo, da pele, do sangue. Tudo se enrijecia e se potencializava para o toque do outro. Tudo era o apelo do outro. Tudo era o outro e ele se esvazia nessa tensão involuntária de uma trama tecida pelo impulso. E o gozo da pele que se lasca inteira. Que ferve e que se esvai na tentativa singela de contaminar o outro com um pouco de existência sua.
E era esse misto de sensações próprias, era esse misto de sensações intrínsecas que o menino chamava de vida. A vida era toda internalizada. Acontecia aqui dentro e se refletia no mundo lá fora. E foi esse internalizar-se que, com o tempo ele construiu o nada.